Descreverei um pouco de mim para facilitar a compreensão do raciocínio. Fiz mecânica e matemática, trabalhei na indústria e Informática solucionando os mais diversos problemas, sempre com orgulhosa lógica e impecável precisão.
Depois dos 50 lancei-me rumo ao mundo desconhecido da psicologia onde lenta e arduamente fui conhecer capacidades diferentes da minha.
Parte das exigências da graduação em psicologia eram os estágios obrigatórios. Assim, por exigências acadêmicas enfiaram-me numa escola especializada em crianças com Síndrome de Down.
Estufei o peito e orgulhosamente observava milhares de condecorações imaginadas brilhando em meu inflado ego. Medalhas virtuais recebidas por excelestes serviços prestados na solução de problemas. Iria assim, distribuir e derramar benevolamente a excelência de minhas capacidades sobre aquelas pobres crianças Down.
Num dos primeiros dias do estágio fui controlar o descontrole de um menino SD de sete anos. Inesperadamente ele cuspiu-me na cara. Meu cérebro entrou em curto e meu rosto fervia tanto que rapidamente secou a saliva daquele pestinha. Sem saber como, e pela primeira vez, senti o cavalo chucro da minha agressividade ser ensilhado e domado por uma criança “defeituosa” sem ter dirigido-me uma única palavra.
Acho que minha mãe nunca soube, mas ao término daquela aula, fui à casa dela para silenciosamente chorar e passar à limpo aquela lição que tantas vezes ela havia tentado ensinar.
Dias mais tarde aconteceu um novo e marcante episódio. As crianças preparavam um trabalhinho para entregar na festinha do dia dos pais.
Fui ajudar um garoto SD de pouco mais de 10 anos. Ele também tinha paralisia cerebral (PC) e usava um óculos fundo de garrafa.
O papel no qual ele tentava espalhar uma cola com glitter escorregava sobre a mesinha, sendo puxado pelo tubo da cola. Pus o dedo indicador no canto da folha, assim ele conseguiu deslizar a cola. Ele pareceu ter gostado e fazia muitas voltas com a cola sobre o papel até que veio em direção ao ponto em que eu segurava. Troquei o dedo de lugar para ele trabalhar livremente, mas ele seguiu meu dedo. Troquei novamente e ele continuou a perseguir-me. Então deixei. Este menino ria tanto, tão leve e contagiante que fiquei fascinado pela sua alegria. Várias vezes repetiu aquele gesto. Sujava meu dedo e espalhava sua alegria em todas as direções do planeta.
Terminada a atividade disse-lhe para guardar e deixar secar o trabalhinho, mas sua primeira reação foi limpar um pouco meu dedo.
Enquanto eu ajudava a arrumar a sala ele voltou com água na mão em concha e sua toalhinha no braço. Puxou minha mão para junto de seus óculos fundo de garrafa, lavou meu dedo sem perceber o angu que fazia no chão, mas viu que o dedo não ficou limpo o suficiente e antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, numa lambida limpou o que restava.
Nunca mais esta lição saiu-me da cabeça. Aquele menino SD, PC e óculos fundo de garrafa, disse que não importa saber para que serve e nem como calcular uma catenária. Disse que as máquinas que projetei são boas, mas não cabem entre nós, que os sistemas que desenvolvi ou corrigi pouco ensinaram-me da vida, que dezenas de linguagens de programação que aprendi não falam ao coração. Sem uma única palavra ele disse-me assim: “Zé, você sabe muito e se acha inteligente e veja! Ainda pode aprender a amar”.
Confesso que estou tentando aprender a amar, o “orgulho de ser inteligente”, hoje tento substituir por “arrogância e prepotência”. Inteligência medida por fórmulas de QI, QE e tantas outras, servem mesmo para colocar as pessoas em caixinhas, listas de classificação, escolher, rejeitar, mas dificilmente nos deixam ver o fascinante que é e que pode ser cada ser humano.
José Luiz Nauiack em Março de 2019 Image by yulia84 from Pixabay